Lucidez

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Ainda tinha vigor para apertar no punho a lucidez que se escapava, que se rebelava, procurando fugir-lhe entre os dedos, perseguindo um panorama que foi seu num tempo já perdido, confundido nesse Inverno que chovia com dura insistência sobre a paisagem desolada da morte. Ele tinha estado ali, parado debaixo dessa chuva, de pé, inamovível como uma estátua, suportando a rajada de granizo que lhe cortava as pálpebras enquanto o seu cérebro construía as imagens, essas imagens voluptuosas, amargas, que lhe povoaram o seu mundo. (...) porém (...) acreditara que a resistência - embora dolorosa - seria eficaz. Pôs na sua rebeldia o pouco vigor que ainda lhe restava depois do seu passado vacilante. No entanto (...) de nada lhe valeu defender-se como uma fera em retirada e mostrar os dentes de cão ferido aos fantasmas do medo. De nada lhe valeu arrastar-se com as vísceras despedaçadas para afugentar os corvos da luxúria. Tentou levantar entre o seu passado e o seu presente uma trincheira de açucenas. Mas foi inútil a sua luta, como foram inúteis as dentadas que deu na terra dos vermes para sentir na língua essa humidade tépida que não teve o leite da sua mãe. Sim. Agora esse mundo tinha vindo até ele. Tinha-se tornado presente, com toda a sua realidade indestrutível; tinha-se imposto à sua morte como uma força maior que a vontade. A sede. Ali estava ela, a empurrá-lo para a cal das paredes, essa sede eterna que lhe enchia a garganta com o seu passado turvo de amanheceres. Porque agora, nessa madrugada definitiva, tinha de enfrentar a terrível verdade que acabava de deter-se nas suas costas. Era doloroso SABER QUE TINHA DE SER ELE A QUEBRAR COM OS SEUS PRÓPRIOS BRAÇOS O ESPARTILHO DA SUA REBELDIA.

In
Olhos de Cão Azul, Gabriel García Marquez

1 comentário:

maré disse...

:)
os espartilhos sufocam

(segundo reza a história)

e em analogia



já o disse...

belíssimo, este excerto!